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sexta-feira, 24 de julho de 2020

Por que é possível falar em política genocida no Brasil de 2020?

Fotografia: Sergio Moraes/Reuters

Recentemente, a fala do Ministro Gilmar Mendes, referindo-se à suposta responsabilidade dos militares pela política genocida praticada atualmente no Brasil, causou polêmica. A questão foi o uso da palavra, que evoca experiências históricas traumáticas e pavorosas, como aquela vivida no holocausto. Remete, também, a experiências próximas de nós, como a dos indígenas dizimados pelos portugueses, porque cassados, escravizados, infectados por doenças trazidas para cá e mortos. A ocupação do território nacional implicou a redução da população indígena em pelo menos 80%. Esses massacres históricos, direcionados contra populações específicas, se dão a partir de escolhas políticas que às vezes são adotadas sob a lógica da exceção, mas outras tantas vezes são colocadas em prática sob o manto da democracia. É o caso dos genocídios praticados pelos colonizadores nos países periféricos como o nosso.

Em resumo, genocídio é definido como a prática de extermínio de um conjunto de pessoas, pelas mais diversas razões, eleitas pela vontade de quem extermina. Pode ser para ocupar o território que essas pessoas habitam ou por razões étnicas, religiosas, econômicas. Mais recentemente, Achille Mbembe cunhou o termo necropolítica, definindo-o como a escolha estatal de matar determinados grupos de pessoas. Novamente aqui está presente o fato de que se trata de uma escolha dos dominantes. A diferença é que o conceito de necropolítica se refere especificamente ao conjunto de escolhas políticas de determinado governo, em relação a certo grupo de pessoas, de modo a escolher quem pode e quem não pode continuar vivendo.

Sob tal lógica, aqueles que tem o poder de gestão do Estado optam, deliberadamente, por versar recursos públicos, instrumentalizar a segurança pública e autorizar ação de forças repressoras, de modo a conceber como consequência “natural” e, por isso, desejada, a morte de uma parcela específica da população.

Quando olhamos para a realidade brasileira, parece legítimo questionar por que apenas agora se utiliza esses conceitos de necropolítica ou prática genocida para identificar a política adotada em nosso país. Até para que saibamos se é mesmo possível denominar genocida uma tal política, é preciso ter presente tudo o que nos trouxe até aqui.

É verdade que o Estado Social não chegou a se realizar no Brasil e que os Direitos Humanos nunca foram reconhecidos a uma parcela importante da população. É também verdade que há uma estrutura histórica que determina uma atuação estatal desde sempre comprometida com a manutenção da desigualdade social. E, em uma realidade de desigualdade abissal como a nossa, em que o mesmo grupo (que detém capital) sempre foi privilegiado em detrimento de outro, aquele formado por pessoas pobres, negras, habitantes das periferias dos grandes centros urbanos, não é difícil perceber que as políticas públicas foram determinantes para permitir a sobrevivência e implicar a morte de determinadas pessoas.

Em 2015, quando a situação no país era diversa, já havia a denúncia do longo tempo de espera, muitas vezes fatal, para o atendimento pelo SUS. Já havia, também, importante diferença na cor da população carcerária no Brasil, indicando abertamente a existência de uma política pública de criminalização de pessoas negras e pardas.

Por que, então, não lembrávamos a palavra genocídio nem nos preocupávamos em evocar o termo necropolítica para identificar a gestão pública da morte?

Certamente porque o Estado, mesmo sendo forma política do capital e, portanto, fazendo escolhas que concretamente beneficiam quem tem mais e penalizam quem nada tem, adotava políticas públicas que de algum modo compensavam a dominação e reduziam (pouco) as desigualdades. A vida era, portanto, concretamente melhor, pelo menos para parte da população.

O que passa a ocorrer no Brasil a partir de 2013 é, em parte, dialeticamente, o resultado dessa gestão política para o capital, que nunca ousou promover mudanças profundas e enfrentar chagas históricas como a do racismo e a do machismo, ambos estruturais. A escolha de conferir direitos, gerir crises, fazer concessões, mas perpetuar as bases de um sistema profundamente perverso (que exclui, produz desigualdade e miséria; estimula concentração de renda e concorrência individual) não tinha como resultar algo diverso. O capitalismo só convive com inclusão e distribuição de renda até um limite. Para além disso, quando há alguma ameaça a sua continuidade, o sistema do capital historicamente reage. E a reação, no caso do Brasil, é também uma reação às reivindicações por essas mudanças estruturais nunca feitas, promovidas especialmente pelo movimento negro, feminino e LGBTIQ+.

Trata-se da percepção, talvez ainda não completamente compreendida, de que há um esgotamento do capitalismo e, bem por isso, os movimentos de resistência se replicaram em diferentes sociedades do mundo ocidental (Primavera Árabe, Occupy, etc), no mesmo período. Essas sociedades, que vivem momentos diversos de realização das potencialidades e dos limites do capital, têm algo em comum. A maioria absoluta de sua população precisa trabalhar para sobreviver. Essa maioria de pessoas já estava, em maior ou menor medida, sem acesso às benesses do sistema: às novas tecnologias, às comodidades da vida moderna, às possibilidades de fruição de tudo o que, ao fim e ao cabo, o trabalho humano torna viável. Já conhecia o Estado bem mais em sua face repressora, do que social.

A crise econômica que a partir de 2013 torna-se mais clara e determina a necessidade de contingenciamento de gastos impõe uma escolha: seguir apostando em inclusão social e nos direitos humanos, como mecanismos de acomodação e manutenção da dominação de poucos, ou romper com esse freio e mostrar a verdadeira face do capital. Alguns países seguiram alternando políticas de austeridade e de inclusão, muitos promoveram mudanças que precarizam seus sistemas de proteção social, mas nenhum deles assumiu, com tamanha clareza, uma postura tão abertamente hostil ao que se compreende como Estado Social como o Brasil, um país que sequer tornou real o projeto de sociedade que edificou na Constituição de 1988.

O que hoje chamamos de necropolítica ou de política genocida é, portanto, o aprofundamento de algo que sempre esteve presente: a dominação, opressão e exploração. Agora, porém, o exercício da dominação não tem como efeito apenas permitir que alguns vivam o luxo construído a partir da miséria de muitos. Agora, a dominação é exercida para eliminar pessoas de modo sistemático. Eliminar porque o capital já aprendeu a se reproduzir sozinho; porque a terra está ficando pequena para tanta gente; porque já se esgotaram as possibilidades de colonização predatória; porque há também esgotamento de alguns recursos naturais; porque não há como produzir igualdade e inclusão em um sistema que se funda na concorrência e na acumulação. Portanto, as pessoas que até então, dentro da lógica do capital, eram exploradas, mas ao mesmo tempo tinham “permissão” para seguir vivendo, porque úteis ao sistema, agora são alvo de políticas públicas orientadas a fazer-lhes morrer.

No Brasil, essa alteração de rota, que não muda o que está na essência do sistema, é bem representada por escolhas políticas insustentáveis da perspectiva social ou humana.

A Lei 12.850/2013 acendeu o sinal de alerta. Como resposta ao movimento social que ocupou as ruas em junho daquele ano, a lei – publicada no dia 02 de agosto – define organizações criminosas, compreendendo como tais as “organizações terroristas”. Em 2016, ainda sob o governo de Dilma Rousseff, a Lei 13.260, de março daquele ano, conceitua “ato de terrorismo” como aquele que provoca “terror social ou generalizado”, expondo “a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública”. Buscava-se com isso intimidar os movimentos de denúncia contra o esgotamento do sistema e contra o alijamento de parte significativa da população, das possibilidades materiais de viver com um mínimo de dignidade.

Em dezembro de 2016, já sob o governo interino de Michel Temer, a EC 95, ao congelar os gastos sociais por 20 anos, determinou concretamente a impossibilidade de manter o número de escolas, postos de saúde, hospitais, creches públicas e ações concretas para a promoção do trabalho.

A “reforma” trabalhista (Lei 13.467/2017) autorizou jornadas de 12h sem intervalo e contratações precárias; facilitou a despedida; tornou praticamente inviável a atuação sindical e modificou várias regras processuais para dificultar o acesso da classe trabalhadora à Justiça do Trabalho. A Lei 13.429, do mesmo ano, ampliou as possibilidades de terceirização, uma técnica de rebaixamento das condições de trabalho e de vida de quem depende do trabalho para sobreviver.

O Pacote Anticrime (Lei 13.964/2019) e toda a política pública de repressão adotada pelo atual governo e por muitos estados e municípios, constituem verdadeira declaração de guerra às populações das favelas e periferias das grandes cidades. A operação de eliminação dessas populações vem sendo realizada com tanta eficiência, que algumas escolas do Rio de Janeiro sentiram-se obrigadas a pintar seus telhados com a mensagem “Escola, não atire!”1.

A EC 103 (“reforma” da previdência) tornou praticamente impossível a obtenção de aposentadoria, além de dificultar o acesso a outros benefícios previdenciários e alterar a fórmula de cálculo, para reduzir seus valores.

A gestão da pandemia é outro exemplo emblemático.

Desde que a COVID-19 chegou ao Brasil, em 26 de fevereiro de 2020, mais de 2 milhões de pessoas foram infectadas e mais de 80.000 pessoas morreram. A média, há cerca de duas semanas, tem sido de mais de 1.000 mortes por dia. De acordo com a UFPEL, a subnotificação e a ausência de testagem faz com que esse número, em realidade, seja pelo menos 7 vezes maior. Não se trata de algo que decorre apenas das características da doença. É o resultado de uma escolha política, que se revela não apenas pelo avanço de legislações que retiram direitos sociais, mas sobretudo pela deliberada atuação do governo em negar à população brasileira informações adequadas sobre a doença, equipamentos de proteção contra o contágio, medidas que viabilizem o isolamento ou o tratamento.

Ao contrário, a insistência em incentivar o uso de medicamento não recomendado pela OMS (cloroquina), as reiteradas manifestações minimizando a gravidade da doença e a postura de seguir participando de eventos, falando em público sem o uso de máscara ou do distanciamento adequado, são exemplos de condutas que incentivam o contágio, o adoecimento e a morte. Enquanto quem ocupa o cargo de Presidente adota essa postura, outros sujeitos que estão em posição de poder também atuam fortemente para aprovar regras que majoram jornada, reduzem salário, retiram direitos, atingem populações originárias, destroem o ambiente. Regras propostas pelo Executivo, chanceladas pelo Parlamento e ratificadas pela cúpula do Poder Judiciário.

E se ainda há dúvida sobre a possibilidade de qualificar a atual política como genocida, basta saber que o Ministério da Saúde, que não tem ministro e está sendo gerido por um militar, gastou menos de um terço dos R$ 39,3 bilhões liberados para o combate ao coronavírus por meio de medidas provisórias. O general Eduardo Pazuello admitiu isso em uma audiência pública da comissão mista criada para acompanhar as ações do governo federal no enfrentamento à COVID-19, no final de junho. Segundo ele, foram gastos R$ 10,9 bilhões (27,2% do valor disponibilizado). Em relação à MP 969/2020, por exemplo, que autoriza a liberação de R$ 10 bilhões para Estados e Municípios adotarem medidas de enfrentamento da pandemia, nenhum único real foi gasto. Segundo reportagem na página do Senado, perguntado sobre isso, o general afirma “O percentual de saldo que temos considero que está bom. É bom que tenha algum saldo para que a gente possa manobrar”2.

Eis porque é possível falar de uma política genocida no Brasil hoje. O governo segue, em meio à pandemia, não apenas editando regras que concretamente pioram a vida das pessoas, impedindo-as, em alguns casos, de continuar vivendo, como também deliberadamente deixando de aplicar recursos de que dispõe, no combate à pandemia.

Reconhecer o genocídio que está sendo praticado contra a população brasileira é o primeiro passo para combatê-lo. O passo seguinte é reconhecer que o que tínhamos já não era suficiente e, de algum modo, nos conduziu até aqui ou, ao menos, não foi suficientemente forte para evitar o desmanche. Mais do que reconhecer o caráter genocida da política que vem sendo aplicada no país, é preciso propor mudança.

Uma mudança profunda, estrutural, que inicie pela radicalização da efetividade dos direitos sociais, pela edição de leis que taxem as fortunas, dividam as terras e orientem a produção para necessidades reais, e não artificiais. Para então evoluir para uma alteração mais profunda, em que a lógica da distribuição de bens e riquezas não seja a da acumulação, mas a da divisão igualitária e fraterna.

Parece utópico, mas é real, urgente e necessário, pois o que está em jogo é a possibilidade de seguir vivendo em sociedade.


N
otas

1 https://revistaforum.com.br/brasil/placa-em-telhado-no-complexo-da-mare-no-rio-diz-escola-nao-atire/

2 https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/06/23/ministerio-so-gastou-27-2-do-dinheiro-para-combater-pandemia-admite-pazuello


Valdete Souto Severo é doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP e juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região.

Artigo publicado originalmente no site "Democracia e Mundo do Trabalho em Debate" (leia aqui).

Mesmo alertado para a falta de medicamentos de UTI, governo federal resolveu priorizar a cloroquina


Reportagem do Estadão informa que o governo federal vem sendo alertado desde maio sobre a falta de medicamentos para UTI. Apesar disso, resolveu dar prioridade à compra/fabricação de cloroquina.
Entenda:
De maio a julho, membros do Centro de Operações de Emergência (COE) informaram ao Ministério sobre desabastecimento de medicamentos para pacientes graves e sobras de cloroquina (mais de 4 milhões de comprimidos).
Essa informação foi confirmada por gestores do SUS que participaram de discussões do Ministério da Saúde. Segundo eles, os primeiros alertas sobre o desabastecimento de medicamentos contra a covid-19 foram feitos em maio.
Na reunião de 29 de maio, membros do COE mostraram-se preocupados sobre o desabastecimento de insumos e medicamentos. A ata de reunião aponta risco de falta de 267 “insumos”.

A reação inicial do governo federal aos alertas foi questionar os dados sobre desabastecimento relatados pelas secretarias e afirmar que a busca pelo produto cabia a Estados e Municípios. Somente um mês depois, o Ministério da Saúde resolveu atuar também na compra dos fármacos para UTI.
No dia 3 de julho, em nova reunião, o comitê alertou que houve um “estouro de preços devido à alta procura” e o Ministério da Saúde ainda corria atrás de compras desses medicamentos no Brasil e no exterior e de requisição de estoques da indústria farmacêutica. Na ocasião, representantes de Estados e municípios afirmaram ter remédios para mais 2 a 6 dias.
Por fim, a reportagem mostra que, até agora, o governo federal não conseguiu  solucionar a falta desses medicamentos. 

terça-feira, 21 de julho de 2020

Corrupção: militares do Exército usaram dinheiro público para "comer gente"

 
A Justiça Militar da União condenou 26 pessoas na última sexta-feira (17/7). São militares do Exército Brasileiro e empresários acusados de participar de um esquema de corrupção no Comando Militar da Amazônia. 

De acordo com a decisão, os crimes aconteceram entre 2005 e 2006. O grupo teria praticado fraudes em licitações e contratos para a compra de alimentos destinados às unidades daquele comando. 

Os policiais federais constataram manipulação de planilhas de preços para favorecer os empresários, fraudes e desvios na distribuição de gêneros alimentícios e até o recebimento de propinas por parte dos militares. 

Entre os oficiais do Exército, estão dois coronéis, um tenente-coronel, um major, cinco capitães e um tenente. Há ainda militares de graduação inferior que recebiam “mesadas” para não atrapalhar o esquema. 

Escutas telefônicas demonstraram que o contato de dois capitães com um dos empresários era tão estreito “que este último contratou prostitutas e promoveu uma festa em um motel de Manaus para os referidos oficiais” (veja imagem acima).




quinta-feira, 16 de julho de 2020

Ministério da Saúde pressiona Fiocruz a recomendar cloroquina contra a Covid-19



Por meio de ofício enviado à Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), o Ministério da Saúde pressionou aquela entidade científica a recomendar o "tratamento precoce" contra a covid-19, com cloroquina e outros fármacos.

No Twitter, a jornalista e editora do Jornal de Ciências da USP (Universidade de São Paulo) Luiza Caires classificou o fato como "revoltante" e um "crime contra a autonomia científica e a saúde dos brasileiros!"

Feliz dia de Minas Gerais!



Ser mineiro

Como todo mineiro é um pouco filósofo, há um mistério sobre o qual medito há anos: o que é ser mineiro?

De reflexões e inflexões que extraí sobre a mineirice - muitas delas colhidas de metafísicas inscrições em rótulos de cachaça e quinquilharias de beira de estrada - eis as conclusões a que cheguei:

Mineiro a gente não entende - interpreta.

Ser mineiro é dormir no chão para não cair da cama; usar sapatos de borracha para não dar esmola a cego; tomar café ralo e esconder dinheiro grosso; pedir emprestado para disfarçar a fartura.

É desconfiar até dos próprios pensamentos e não dar adeus para evitar abrir a mão.

Mineiro não é contra nem a favor; antes, pelo contrário. Aliás, mineiro não fala, proseia. Toca em desgraça, doença e morte e vive como quem se julga eterno. Chega na estação antes de colocarem os trilhos, para não perder o trem. E, na hora em embarque, grita para a mulher, que carrega a sua mala: "Corre com os trens que a coisa já chegou!"

Mineiro, quando viaja, leva de tudo, até água para beber. E um coração carregado de saudades.

Relógio de mineiro é enfeite. Pontual para chegar, o mineiro nunca tem hora para sair. A diferença entre o suíço e o mineiro é que o primeiro chega na hora. O mineiro chega antes.

O bom mineiro não laça boi com embira, não dá rasteira em pé de vento, não pisa no escuro, não anda no molhado, só acredita em fumaça quando vê fogo, não estica conversas com estranhos, só arrisca quando tem certeza, e não troca um pássaro na mão por dois voando.

Ser mineiro é sorrir sem mostrar os dentes, ter a esperteza das serpentes e fingir a simplicidade das pombas, fazer de conta que acredita nas autoridades e conspirar contra o governo.

Mineiro foge da luz do sol por suspeitar da própria sombra, vive entre montanhas e sonha com o mar, viaja mundo para comer, do outro lado do planeta, um tutu de feijão com couve picada.

Mineiro sai de Minas sem que Minas saia dele. Fica uma saudade forte, funda, farta e fértil.

Enquanto outros não conseguem, mineiro num dá conta. Nem paquera, espia. Não arruma briga, caça confusão. E mineira não se perfuma, fica cheirosa.

Ser mineiro é venerar o passado como relíquia e falar do futuro como utopia, curtir saudade na cachaça e paixão em serenatas, dormir com um olho fechado e outro aberto, suscitar intrigas com tranqüilidade de espírito, acender vela à santa e, por via das dúvidas, não conjurar o diabo.

Mineiro fala de política como se só ele entendesse do assunto, faz oposição sem granjear inimigos, gera filhos para virar compadre de político.

Ser mineiro é fazer a pergunta já sabendo a resposta, ter orgulho de ser humilde, bancar a raposa e ainda insistir em tomar conta do galinheiro.

Mineiro fica em cima do muro, não por imparcialidade, mas para poder ver melhor os dois lados.

Cabeça-dura, o mineiro tem o coração mole. Acredita mais no fascínio da simpatia que no poder das idéias. Fala manso para quebrar as resistências do adversário.

Mineiro é isso, sô! Come as sílabas para não morrer pela boca. Faz economia de palavras para não gastar saliva. Fala manso para quebrar as resistências do interlocutor.

Sonega letras para economizar palavras. De vossa mercê, passa pra vossemecê, vossência, vosmecê, você, ocê, cê e, num demora muito, usará só o acento circunflexo!

Mineiro fala um dialeto que só outro mineiro entende, como aquele sujeito que, à beira do fogão de lenha, ensinava o outro a fazer café. Fervida a água, o aprendiz indagou: "Pó pô pó?" E o outro respondeu: "Pó pô, pô".

Mineiro não fica louco; piora. Por isso, em Minas não se diz que alguém endoidou, mas sim que "se manifestou..."

Ser mineiro é comer goiabada de Ponte Nova, doce de leite de Viçosa, queijo do Serro, requeijão de Teófilo Otoni e lingüiça de Formiga, tudo regado a pinga de Salinas.

É cozinhar em fogão de lenha com panela de pedra sabão.

Mineiro não tem idéias, só lembranças; não raciocina, associa; pão-duro, tem o coração mole; pensa que esposa é parente, filho, empregado e carrega sobrenome como título de nobreza

Ser mineiro é acreditar mais no fascínio da simpatia que no poder das idéias. É navegar em montanhas e saber criar bois, filhos e versos.

Mineiro vai ao teatro, não para ver, mas para ser visto, freqüenta igreja para fingir piedade, ri antes de contar a piada e chora com a desgraça alheia. Adora sala de visitas trancada, na esperança de retorno do rei.

Avarento, não lê o jornal de uma só vez para não gastar as letras, e ainda guarda para o dia seguinte para poder ter notícias. Aliás, mineiro não lê, passa os olhos. Não fala ao telefone, dá recado.

Praia de mineiro é barzinho e, sua sala de visitas, balcão de armazém e cerca de curral. Ali a língua rola solta na conversa mole, como se o tempo fosse eterno. Certo mesmo é que o momento é terno.

Ser mineiro é ajoelhar na igreja para ver melhor as pernas da viúva, frequentar batizado para pedir votos, ir a casamentos para exibir roupa nova.

Mineiro que não reza não se preza. Acende a Deus a vela comprada do diabo. Religioso, na sua crendice há lugar para todos: O Cujo e a mula-sem-cabeça; assombrações e fantasmas; duendes e extra-terrestres.

Mineiro vai a enterro para conferir quem continua vivo. Nunca sabe o que dizer aos parentes do falecido, mas fica horas na fila de cumprimentos para marcar presença. Leva lenço no bolso para o caso de ter de enxugar as lágrimas da família.

Não manda flores porque desconfia que a flora embolsa a grana e não cumpre o trato.

Mineiro só elogia quando o outro virou defunto. E fala mal de vivo convencido de que está fazendo o bem.

Ser mineiro é esbanjar tolerância para mendigar afeto, proferir definições sem se definir, contar casos sem falar de si próprio, fazer perguntas já sabendo as respostas.

Mineiro é capaz de falar horas seguidas sem dizer nada. E cumprimenta com mão mole para escapar do aperto.

Mineiro é feito pedra preciosa: visto sem atenção não revela o valor que tem, pois esconde o jogo para ganhar a partida e acredita que a fruta do vizinho é sempre mais gostosa.

Mineiro age com a esperteza das serpentes mas se veste com a simplicidade das pombas, e encobre as contradições com o manto fictício da cordialidade. Mas conta fora tudo que se passa em casa.

Ser mineiro é fazer cara feia e rir com o coração, andar com guarda-chuva para disfarçar a bengala, fingir que não sabe o que bem conhece, fumar cigarro de palha para espantar mosquitos, mascar fumo para amaciar a dentadura.

Mineiro sabe quantas pernas tem a cobra, escova os dentes do alho, teme rasteira de pé de mesa e, por via das dúvidas, põe água e alpiste para o cuco.

Mineiro é pão-duro, não abre a mão nem pra dar bom dia. Desconfiado, retira o dinheiro do banco, conta e torna a depositar. Vive pobre para morrer rico e pede emprestado para disfarçar a fartura.

Mineiro rico compra carro do ano e manda pôr meia sola em sapato usado. Viaja ao exterior e não dá esmola a pobre. Fica sócio de clube para ter status. E faz filho para virar compadre de político.

Pacífico, mineiro dá um boi para não entrar na briga e a boiada para continuar de fora. Mas, se pisam no calo do mineiro, ele conjura, te esconjura, jurado e juramentado no sangue de Tiradentes.

Mineiro é como angu, só fica no ponto quando se mexe com ele.

Em Minas, o juiz é de fora, o mar é de Espanha, os montes são claros, a flor é viçosa, a ponte é nova, o ouro é preto, é belo o horizonte, o pouso é alegre, as dores são de indaiá e os poços de caldas.

"Minas Gerais é muitas", como disse Guimarães Rosa. É fogão de lenha e comida preparada em panela de pedra sabão; turmalina e esmeralda; tropa de burro e rios indolentes chorando a caminho do mar; sino de igreja e tropeiros mourejando gado sob a tarde incendiada pelo hálito da noite.

Minas é Mantiqueira e serrado, Aleijadinho e Amílcar de Castro, Drummond e Milton Nascimento, pão de queijo e broa de fubá.

Minas é uma mulher de ancas firmes e seios fartos, sensual nas curvas, dócil no trato, barroca no estilo e envolta em brocados, ostentando camafeus.

Minas é saborosamente mágica.

Ave, Minas! Batizada Gerais, és uma terra muito singular.

Frei Betto é escritor, mineiro, autor de “Comer como um frade – divinas receitas para quem sabe por que temos um céu na boca” (José Olympio), entre outros livros.

MP propõe ação contra lei que persiste em manter número indevido de funerárias em Araguari


Lei municipal de dezembro de 2019 modifica mas não corrige outra que, três meses antes, foi declarada inconstitucional pelo TJMG

Uma nova Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI nº 1.0000.20.444231-3/000), ajuizada pelo procurador-geral de Justiça Antônio Sérgio Tonet, pede ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) que declare inconstitucional a Lei nº 6.236, de 4 de dezembro de 2019, por meio da qual o município de Araguari, no Triângulo Mineiro, persiste em autorizar apenas duas concessões para empresas de serviços funerários.

Conforme os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, Araguari poderia contar com três prestadoras do serviço, já que a legislação permite que cada município conte com uma concessionária para cada 35 mil habitantes e que, de acordo com o último censo populacional realizado pelo IBGE, a cidade contava com 117.445 habitantes.

Em setembro de 2019, também a pedido do MPMG, a Lei nº 2.699/1991 foi declarada inconstitucional, pelo TJMG, por violar o princípio da livre iniciativa ao conceder a prestação dos serviços a uma empresa, apenas.

Entretanto, em dezembro do mesmo ano, a Câmara Municipal aprovou a Lei nº 6.236, questionada, agora, porque corrigiu alguns dispositivos da Lei nº 2.699/1991, mas ampliou apenas de uma para duas o número de funerárias que podem atuar no município.

Conforme argumenta o MPMG, com a lei de dezembro de 2019, além de persistir na inconstitucionalidade material, o município viola, sobretudo, a autoridade da decisão judicial proferida três meses antes.

As ADIs de 2019 e 2020 resultaram de Ações Civis Públicas propostas para fins de análise da constitucionalidade do art. 97, §4º, Lei 41/2006, e art. 8º da Lei nº 117/2015, propostas pelo promotor de Justiça da comarca de Araguari, André Luís Alves de Melo.

Nas duas ADIs, o PGJ argumenta que a salutar concorrência entre fornecedores desse segmento possibilita o aumento da oferta e o desenvolvimento da atividade, além de melhores condições de escolha, resultantes da variação de preços.

Argumenta ainda que, ao impedir a concorrência comercial, o município fere também a livre iniciativa, princípio previsto na Constituição Federal que deve ser observado pelo município, por força do art. 165, §1º, e do art. 172 da Constituição do Estado de Minas Gerais.

Fonte: MPMG

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